Pular para o conteúdo principal

LITERATURA FEMINISTA: CRÔNICAS, (MINI)CONTOS, POEMAS, RESENHAS E MAIS!

Mulheres assexuais e relacionamentos abusivos (?)

"O bom de ser mulher assexual é estar isenta de relacionamento abusivo".

"O bom de ser mulher assexual é estar isenta de relacionamento abusivo". É mesmo? Tenho certeza de que a pessoa que diz uma frase dessas desconhece ou ignora a realidade das mulheres assexuais. Ser mulher assexual, numa sociedade que trata o sexo, a sexualidade e os relacionamentos afetivos/amorosos de forma compulsória, normatizada/universalizada e banalizada, é estar a todo momento sendo "empurrada" a se relacionar com alguém, independente das suas vontades e do seu bem-estar.
Por mais que lésbicas e gays sejam invisibilizados e deslegitimados (e não me refiro aqui a opressão materializada na agressão física, mas simbólica), pois a sociedade é hétero-normativa, ainda assim, diante de pessoas assexuais, eles têm mais visibilidade, pois, pelo menos, em geral, eles existem. Sim EXISTEM. Pansexuais e bissexuais, apesar de terem menos visibilidade que gays e lésbicas, ainda em comparação com assexuais, têm sua existência mais visível/legitimada. Com os avanços nos estudos da sexualidade humana, cada vez mais nós podemos ter contato com textos que legitimam relacionamentos com pessoas do mesmo gênero (gays e lésbicas se relacionam com pessoas do mesmo gênero, bi e pans podem se relacionar com pessoas do mesmo gênero, pessoas assexuais podem se relacionar com outras do mesmo gênero, apesar de não se ouvir falar muito nessa possibilidade, afinal, ''se a pessoa se relaciona com outra do mesmo gênero tem que ser necessariamente homossexual'') a medida que essa mentalidade se torna mais aceita socialmente. Ainda há muito a se alcançar, é óbvio, sobretudo em direitos, porém o avanço já foi impulsionado, sobretudo pelo movimento LGBT+.
Já adianto que não estou propondo um "cronômetro" de visibilidade, porém para se entender a opressão que assexuais sofrem, e nesse post, me focarei nas mulheres assexuais, é preciso entender que a sociedade não só normatiza a heterossexualidade, mas também o sexo e os relacionamentos afetivos. Logo, se a mentalidade social deslegitima e oprime pessoas não-héteros, como gays, lésbicas, bissexuais, pansexuais e assexuais, a sociedade também estigmatiza quem diz não gostar (ou não gostar frequentemente) de sexo (seja sexo hétero ou não-hétero) ou que não quer estar em relacionamentos, pois ainda é difícil nessa compulsão que se cria em tornos da busca de relacionamentos, entender alguém que diga que não quer se relacionar com alguém, independente do gênero da pessoa.




"A mulher que não namora ou que não tem relacionamento com alguém de alguma forma fracassou na vida''

A mentalidade de que "a mulher que não namora ou que não tem relacionamento com alguém de alguma forma fracassou na vida'', contribui para que mulheres assexuais (e mesmo as não-assexuais) vivenciem relacionamentos abusivos, a medida que muitas delas se relacionam com alguém mesmo não tendo vontade, para, assim, não serem julgadas como "fracassadas", "solteironas", "mal amadas", por estarem solteiras.
Esse discurso deslegitima diretamente as mulheres assexuais arromânticas (aces aro), isto é, aquelas mulheres que geralmente (ou na maior parte da vida) não sentem atração sexual nem sentimental/afetiva por ninguém, logo não desejam se relacionar, namorar, transar... Mas essa condição é tão invisibilizada socialmente, que quando uma mulher ace a assume, ela logo escuta que "precisa de tratamento", pois associam essa orientação sexual a falta de libido, disfunção hormonal, patologia etc., que "é lésbica enrustida, logo deve sair do armário e não ficar se reprimindo", pois se a mulher não se envolve com homens, para a massa social, ela provavelmente é lésbica, ou, ainda, "você está se fazendo de difícil, santa, puritana", pois é ''impossível'' você não querer se relacionar com alguém, você só poder ter "algum problema", logo ''precisa de ajuda''.
Diante disso, as mulheres aces se veem em volta de discursos deslegitimadores, machistas, abusivos, patologizadores, através dos quais veicula-se a imagem de mulheres "frias", "mal amadas", "traumatizadas com os homens'', "enrustidas", ou, ainda, passa-se uma imagem romantizada de rótulos machistas que as mulheres, em geral, estão sujeitas, tais como, "santinhas", "castas/para casar", "puritana" etc. Muitas mulheres assexuais, as quais na maioria das vezes nem sabem que são assexuais, mantém relacionamentos com outras pessoas, sobretudo com homens (por causa da heteronormatividade), pois acham que têm obrigação de cumprir esse "destino" criado socialmente. Muitas fazem sexo sem gostar, consentem, mas não sentem prazer, porém acham que "devem sexo" ao seu parceiro. E não, não devem porra nenhuma.
A violência (acefobia) não é praticada só a nível simbólico, de discurso, pois assim como as lésbicas, as assexuais também estão sujeitas a sofrerem "estupros corretivos" para "aprenderem a gostar de homens", para serem "mulheres de verdade''. Dessa forma, muitas mulheres aces se veem obrigadas, para serem vistas como "mulheres normais", e assim não sofrerem tanta pressão social/heteronormativa, a se relacionar com homens, mesmo não gostando.
Até esse momento do texto me referi, sobretudo, às mulheres assexuais arromânticas, ou seja, aquelas que mesmo não se interessando em manter relacionamento com ninguém, nem de forma afetiva, nem sexual, ainda estão sujeitas a sofrerem relacionamentos e/ou relações abusivas, porém quero também mencionar que dentro do espectro da assexualidade existem outras ramificações, além da assexual, dessa forma existem mulheres demisexuais (que podem sentir atração sexual ou vontade de fazer sexo, mas se antes tiverem um vínculo afetivo/emocional com a pessoa), mulheres gray-sexuais (que podem sentir atração sexual, porém de forma rara ou circunstancial) e mulheres assexuais de espectro fluído (que variam de ramificações ao longo da vida, de acordo com suas experiências/vivências). Logo, tais mulheres não estão, infelizmente, isentas de sofrerem com relacionamentos abusivos. Não estão isentas de estarem em relacionamentos que lhes façam mal, seja porque a sociedade diz a todo momento que ''a mulher precisa de um homem ao seu lado'', logo sendo este um discurso que deslegitima lésbicas, aces, bis, pans... ou que "toda pessoa precisa de outra", "todo mundo tem seu chinelo velho", do caralho, sendo esse, em específico, um discurso que fere pessoas assexuais arromânticas.
Diante desse quadro, mulheres assexuais têm sua sexualidade deslegitimada, invisibilizada e patologizada, assim como ocorre com as outras mulheres não-héteros, porém, para piorar a situação, ainda têm que lidar com o discurso que nega sua existência legítima, que invisibiliza o fato de que existem mulheres que são (ou podem ser) felizes sem se relacionar sexualmente/amorosamente com alguém, sendo isso resultado de uma sociedade que trata de forma compulsória as relações sexuais e afetivas entre as pessoas. Assim sendo, essas mulheres precisam que o feminismo e o movimento LGBT+ (sendo este ''+'' não só um símbolo bonitinho, mas agregador de outras orientações sexuais) levantem bandeiras, criem pautas que acolham e visibilizem as assexuais, pois elas existem e resistem!

Lizandra Souza.

Comentários

  1. Eu simplesmente amo esse texto,pois a cada ataque verbal que eu sofro e creio que a maior parte de nós,mulheres ace aro,procuro me aprofundar e ler mais sobre a assexualidade.Além disso,foi assim que me descobri,pois não me encaixava em nenhuma das orientações sexuais mais visíveis pela sociedade (heterossexual,homo,bi e etc.).Se vc não for um/a/e heterossexual/cis, com certeza irá sofrer alguma agressão (verbal, física,psicólogica,entre outras).Precisa.o de visibilidade dentro do movimento feminista intersec e tbm do LGBT+, não para sermos mais uma letra bonitinha,mas sim para não sermos julgadas,ditas como anormais,que isso é passageiro,que vc está estressada assim,devido ao fato que precisa arrumar um namorado,que vc deve ser muito frustada por nunca ter namorad.Enfim,as pessoas à nossa volta quer saber mais da nossa orientação sexual/romântica mais do que vc mesma/e/o. É muito chato ter que ficar dando explicações para as pessoas,principalmente para aquelas que vc nem tem algum tipo de intimidade,piora quando é alguém da sua família ou amigo/a/es,ficam te perguntando porque vc não namora,cadê os namoradinhos,fala que deve ser lésbica e não quer assumir,entre outros. Nós (r)existimos!!!! E vamos à luta,vamos tirar a nossa invisibilidade,para que nos tratem com respeito.!
    Queria que você escrevesse mais sobre o/a/es ace aro,seria muito interessante.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pelo comentário!Tentarei escrever mais sobre assexualidade e postar aqui, em geral posto mais sobre aces na página do FB e na minha conta/perfil pessoal lá, estarei atualizando esse assunto aqui em breve.

      Excluir
  2. Eu vejo a supervalorização do sexo sendo propagada em toda a sociedade e mídia e inclusive em grupos feministas, especialmente na vertente liberal. Ignoram a exposição e violencia sexual e emocional que uma mulher pode sofrer em se envolver sexualmente educada sob uma perspectiva sexual irreal, independente se é monogamico ou poligamico.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Feminismo é a ideia radical de que mulheres são gente!

Postagens mais visitadas deste blog

"We Can Do It!": você conhece a origem de um dos grandes símbolos do movimento feminista?

We Can Do It! de J. Howard Miller, 1943. We Can Do It! (Nós podemos fazer isso!) é a legenda de uma das imagens mais conhecidas do movimento feminista. Foi bastante usada a partir do início dos anos 80 do século passado para divulgar o feminismo, desde então várias releituras foram sendo feitas da imagem da moça trabalhadora, usando um lenço na cabeça,  arregaçando as mangas, mostrando um musculoso bíceps e passando a ideia de que "sim, nós mulheres podemos fazer isso!" (sendo este "isso" as atividades tradicionalmente convencionadas aos homens*) ao mesmo tempo em que  se desconstrói a ideia machista de "mulher sexo frágil". Contudo, o que muitas pessoas não sabem é que a imagem foi criada algumas décadas antes, em 1943, e que não tinha nenhuma ligação com a divulgação do feminismo. We Can Do It! originalmente foi um cartaz idealizado para ser uma propaganda de guerra dos Estados Unidos, criada  por J. Howard Miller para a fábrica Westinghouse El

História do adultério: modelos de comportamentos sexistas com dupla moral

Belmiro de Almeida - Arrufos, 1887 A história do adultério é a história da duplicidade de um modelo de comportamento social machista, possuidor de uma moral dupla, segundo a qual os homens, desde quase todas as sociedades antigas, tinham suas ligações extraconjugais toleradas, vistas como pecados veniais, sendo assim suas esposas deveriam encará-las como "pecados livres", que mereciam perdão, pois não era o adultério masculino visto como um pecado muito grave (a não ser que a amante fosse uma mulher casada), enquanto as ligações-extraconjugais femininas estavam ligadas a pecados e a delitos graves que mereciam punições, pois elas não só manchavam a honra e reputação da mulher adúltera, mas também expunham ao ridículo e ao desprezível seu marido, o qual tinha a validação de sua honra e masculinidade postas em jogo. Esse padrão social duplo do adultério teve sua origem nas culturas camponesas "juntamente com a crença de que o homem era o provedor da família e era

10 comportamentos que tiram o valor de um homem

   Hoje em dia os homens (cis, héteros) andam muito desvalorizados. Isso faz com que muitos sofram amargamente nas suas vidas, sobretudo na vida amorosa.  Outro dia eu estava vendo uns vídeos de forró, funk, sertanejo e fiquei chocada com o comportamento vulgar dos rapazes. Agora deram pra ralar até o chão como um bando de putinhos a busca de serem comidos... e a gente, mulherada, já sabe que se o boy rala o pinto no chão é porque ele é um homem rodado, um mero bilau passado.    Antigamente, no tempo de nossas avós, o homem era valorizado pelo seu pudor virginal, não pela sua aparência. Homens eram um prêmio a ser alcançado pelas mulheres, eles tinham que ser conquistados, ganhados. Hoje em dia, muitos machos estão disponíveis para qualquer mulher num estalar de dedos. Escolhe-se um macho diferente a cada esquina. E a mídia ainda insiste em dizer que homem pode dar pra quantas ele quiser, fazendo os machos assimilarem uma ideia errada e vulgar que os levarão a serem infe

Hétero-cis-normatividade, o que é?

Nossa sociedade é hétero-cis-normativa. Isso significa que a heterossexualidade e cisgeneridade são compulsoriamente impostas. Não, não estou dizendo que vocês, heterossexuais-cis, são héteros-cis por compulsão. Quero dizer que há um sistema social que designa TODO MUNDO como sendo hétero-cis ANTES MESMO do nascimento e posteriormente tudo o que foge disso é considerado anormal, imoral e, em muitas sociedades, ilegal.  Antes mesmo de a pessoa nascer, desde o ultrassom, quando é identificado que ela tem pênis ou vagina, há imediatamente uma marcação sexual e de gênero: se tem vagina, vai ter que ser menina, se comportar como é concebido e estabelecido socialmente como "comportamento de menina'' e, por isso, vai ter que gostar de menino; se tem pênis, vai ter que ser um menino, se comportar como é concebido e estabelecido socialmente como "comportamento de menino'' e, por isso, vai ter que gostar de menina. E aí, quando a pessoa com vagina ou com pênis

Vamos falar de misandria?

 O que é misandria no feminismo?   É o ódio generalizado aos homens?   N Ã O.  A misandria geralmente é dicionarizada como sendo o ódio aos homens, sendo análoga a misoginia: ódio às mulheres. Esse registro é equivocado e legitima uma falsa simetria, pois não condiz com a realidade social sexista vivida por homens e mulheres. Não  existe uma opressão sociocultural e histórica institucionalizada que legitima a subordinação do sexo masculino, não existe a dominação-exploração estrutural dos homens pelas mulheres pelo simples fato de eles serem homens, todavia existe o patriarcado: sistema de dominação-exploração das mulheres pelos homens, que subordina o gênero feminino e legitima o ódio institucional contra o sexo feminino e tudo o que a ele é associado, como, por exemplo, a feminilidade. Um exemplo: no Nordeste é um elogio dizer para uma mulher que "ela é mais macho que muito homem", tem até letra de música famosa com essa expressão, contudo um homem ser chamado de